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Karagounis de Câncer

Karagounis de Câncer
Karagounis de CâncerCavaleiro de Ouro
MensagemAssunto: Karagounis de Câncer Karagounis de Câncer Icon_minitime1Dom Fev 24, 2013 4:37 pm

Nome: Theofanis Karagounis
Idade: 23
Armadura: Armadura de Ouro de Câncer
Características Físicas:
Karagounis possui um metro e oitenta e cinco centímetros de altura, com um peso de setenta e cinco quilos muito bem distribuídos num corpo de físico atlético com músculos meio protuberantes, mas muito bem definidos. Cabelo de tamanho médio - até o final da nuca - e de tom castanho escuro, normalmente dividido e caído para os lados da face, quase sempre tampando as partes laterais do rosto. Os olhos são acinzentados, mas num tom escuro, apesar de se tornarem mais claros quando em contato com a luz de forma direta. Possui algumas cicatrizes pelo corpo, provavelmente marcas do passado de seus inúmeros combates.
Quando não usa a armadura as vestes são meio simples, meio complicadas. Sapatos de couro com acabamento de metal nos calcanhares e na ponta. Calça de couro justa e um sobretudo de pano leve, cor clara com o desenho de uma enorme cruz cristã nas costas, luvas de couro nas mãos e alguns aparatos de couro nas pernas, por enquanto de finalidades apenas estéticas. Em volta de seu pescoço fica seu item mais valioso (valor sentimental é claro), um colar com pingente de cruz feito de algum metal barato com as cores prateada e preto.

Spoiler:

Características Mentais:
Um homem possuído pelo senso de responsabilidade e seriedade, contraponto o outro lado onde é possuído por uma sede para os prazeres fugazes da vida. Não é uma pessoa difícil de conviver, apesar de sua arrogância inabalável é só um homem que tenta reencontrar um motivo para prosseguir vivendo uma vez que a maioria das pessoas próximas a ele ou estão mortas ou o traíram. Homem com gosto para qualquer tipo de bebida alcoólica e de sorrisos fáceis, além de sua arrogância, há um sentido subjacente de honra sobre ele que o arrasta para o bom senso, quando crê em uma causa deixa as piadas de lado e vai até o fim. Determinado, um pouco impulsivo e com uma força de vontade exuberante, possui um amor pela batalha, onde sempre revela um sorriso animado - mesmo que suas condições físicas sejam péssimas - sempre que confrontado. Fora isso é um sujeito extremamente bem animado e festeiro, com um gosto peculiar para tocar banjo ou violão e cantar músicas para animar a si mesmo nos tempos livres, mesmo que não chegue a ser um músico, ele arranha um pouco.

História:

1


Mais uma vez sou obrigado a ouvir os gritos de minha mãe atravessando as frestas de minha porta de madeira. Quando isso acontece, sou trancado nesse cômodo insípido e vazio. O cheiro do bolor me tomaria os sentidos se não fossem os gritos. Já tentei tapar os ouvidos. Já tentei tapar as frestas, mas não há tecido que possa contes os gritos de desespero misturados ao de fúria que continuam ocupando a casa onde moro. Sinto-me um inseto voado que acidentalmente caiu num copo de água. Quando mais me debato, mais a água me cerca e me engole. O melhor que consegui até agora foi fazer sangrar minhas mãos contra a madeira cheia de lascas que me separa de minha mãe.

Será que um dia serei maior do que ele? Os gritos de minha mãe me doem na alma. Muito mais do que as lascas de madeira que rasgam minha carne. A casa enfim está silenciosa. Enfim, silenciosa, mas engana-se aquele que pensa o silêncio como sinal de paz. Não nesta casa. Escondidas nessa quietude perturbadora estão minhas irmãs, Marie e Marguerite, abafando o pranto contra os travesseiros. Fingem que tudo está bem e me escondem as lágrimas e os machucados, na esperança de ocultar suas fraquezas. Porque sou o mais novo, porque querem me proteger. Porque ainda me veem como criança.

Minha mãe apareceu com um grande círculo vermelho no olho esquerdo e, apesar de seus esforços para ocultar-se, notei que um filete de sangue escuro lhe maculava a testa e os cabelos loiros e ralos. Quando aqueles bastardos, irmãos de meu pai, saíram da casa, ouvi seus prantos.

Como posso amar o sangue de meu sangue se é ele o causado de tanto sofrimento nesta casa? Não tem amor por nada, exceto pelas riquezas que faz com seu trabalho sujo. Nem ao menos ama a si próprio. Um homem forte de constituição e fraco de espírito. O vício o subjugou e ele não tem humildade o suficiente para admitir que perdeu o controle. Sua ambição lhe consome a alma, enquanto faz sofrer todos aqueles que o rodeiam. Recebe dinheiro para matar e fez disso carreira promissora. E aquelas que um dia tentaram amá-lo, hoje sofrem com suas violências. Não sei ao certo se foi a volúpia do dinheiro ou do sangue que o transformou nesse besta. Mas sei que não o amo. O padre diz que devemos amar ao próximo. Mas não posso amá-lo. Não sou capaz de amá-lo.

E aqueles dois irmãos dele....São ainda piores que porcos. Vivem de restos se se aproveitam de oportunidades roubadas e tomadas à força. São homens maus e sem escrúpulos. Marie tem 17 anos. Marguerite, 15. Fizeram delas suas esposas sem desposá-las, desgraçando-as. Malditos. Basta. Hoje mesmo pego um martelo e arranco as travas dessa maldita porta. Não poderão mais me trancar aqui.

2


Minha caligrafia não está perfeita, pois escrevo com a mão esquerda. Não sei se poderei voltar a escrever com a outra mão. Meus ossos foram moídos pelas mãos de meu pai quando me ergui para desafiá-lo.

Minha ideia de arrancar as travas da porta deu certo, Não puderam me trancar no cômodo e, quando meu pai levantou sua mão embriagada para bater em minha mãe, eu já tinha a sua espada empunhada. Pouco familiarizado com o peso da arma, perdi o equilíbrio quando fui atingi-lo. Minhas irmãs estavam acuadas em um canto, gritando que eu parasse. Temiam que meu pai me matasse. Mas, na hora em que vi com meus próprios olhos a covardia daquele homem robusto, prestes a atingir minha mãe, não pensei na morte ou na dor. Eu só queria que ele parasse.

Minha mãe, pequena e magra... como pôde aguentar tanta violência desse homem?

Levantei a espada dele acima de minha cabeça e girei, com a voz meio trêmula do choro que se prendia fracamente em minha garganta:

- Para! Não se aproxime dela!

Com um empurrão e sem muito esforço, meu pai me jogou ao chão e o peso da espada acelerou minha queda. E, pela primeira vez, aquele homem descontou em mim sua volúpia por sangue. Com suas mãos enormes, ele quebrou-me o pulso e esmagou meus ossos da mão direita, enquanto me erguia do chão. É difícil colocar em palavras o que senti quando o homem me colocou próximo ao seu rosto. O sorriso sarcástico lhe vazava pelos dentes amarelos, e o odor de bebida barata misturado ao suor de muitos dias disputava a atenção de meus sentidos com a dor horrível que eu sentia. Um misto de raiva e medo me acometeu e, sem perceber, como se a morte estivesse me encarando e eu não mais tivesse esperança de continuar vivo, lancei lhe todas as palavras que estavam em meu coração. Que ele era um monstro sem alma, incapaz de ato digno de um homem, que não passava de um animal covarde e estúpido, mas meu discurso foi brutalmente interrompido. Ele desferiu-me um forte soco na boca, enquanto gritava, enfurecido, palavras as quais não pude compreender. Cuspi o sangue no chão e pude ouvi-lo gritar:

- Filho meu não se levanta contra mim! Traidor!

Olhei no fundo de seus olhos amarelos e falei com frieza:

- Você não é meu pai. Seu único familiar é o dinheiro.

Senti outro soco em minha face ainda imberbe, mas desta vez não me abati, parecia que algo crescia e explodia dentro de meu corpo. Um sensação de leveza e paz que não consigo descrever bem. Ignorei a espada que empunhei e corri em sua direção preparando um soco com o punho esquerdo, aconteceu tudo tão rápido que ainda custo a entender. Quando notei havia uma espécie de brilho em volta de meu braço, talvez tenha sido esse brilho que fez com que o soco fosse tão poderoso que quando acertou o estômago daquele homem, o fez voar contra a porta, derrubá-la e cair desacordado do lado de fora de casa. Passei a encarar meu próprio punho, mas desmaiei logo em seguida.

Quando acordei, tudo doía. Meu olho esquerdo latejava e não abria e, com o outro olho, pude ver que Marie estava ao meu lado. Meu braço direito estava imobilizado e senti o gosto do sangue em minha boca. Explorei meus dentes com a língua e notei um grande vão em minha gengiva, na parte de cima, do lado direito, de onde vinha o gosto salgado e acre. Marie segurava o dente perdido em sua mão e olhava-me, repreendendo-me. Impressionei-me com o tamanho dele. Era um bloco sólido de osso, muito maior do que parecia quando se enfileirava ladeando os outros dentes dentro da minha boca.

Marie trocou a compressa que segurava em meu olho inchado e começou a discursar sobre a tolice de meus atos. Que eu devia ser menos inconsequente e me manter quieto no quarto. Tentei virar-me, mas uma dor aguda no meio das costelas me impediu. O homem a quem nunca mais chamei de “pai” acordou durante a noite e ainda meio moribundo graças a meu golpe, tentou espancar-me enquanto estava inconsciente, mas segunda Marie nossa mãe o impediu e tomou a surra por mim, ele conseguiu continuar seu espancamento sórdido mesmo depois que eu já estava desacordado. Marie tinha aquele tom de voz de autoridade que irmãos mais velhos usam para repreender os irmãos menores:

- É disso que estou falando. Foi estupidez enfrentar nosso pai daquela forma, Theo. Nossa mãe quase morre de desgosto em vê-lo apanhando daquele jeito. – e mudando o tom de voz para uma melodia mais serena, com súplica nos olhos, continuou – Prometa que nunca mais fará isso.

Ponderei suas palavras, mas não lhe dei resposta imediata. No meio desse silêncio, vi a figura de minha mãe, emoldurada pela porta do quarto, chegando com uma bacia cheia de água, acompanhada por Marguerite. Meu alívio foi imediato. Ela não tinha ferimentos, além de um hematoma antigo, já esverdeado, nos braços. O homem a quem não chamo mais “pai” se contentou por hora. Ao perceber-me acordado, minha mãe correu para me abraçar e desaguou seu pranto sobre minhas vestes rasgadas.

As três mulheres repetiram o sermão e Marie novamente fez seu pedido:

- Prometa que não voltará a desafiar nosso pai.

Dessa vez, repliquei com firmeza apesar de estar ferido, jogado e imobilizado na cama.

- Não, Marie. Não, mãe. Isso eu não posso prometer. E não o chame de “pai”. Aquele homem abriu mão do direito a esse nome no dia em que levantou os punhos para agredir aqueles que o amam.

3


O homem saiu para mais um serviço sujo. Enfim um pouco de paz. Deixou sua velha espada para trás, já que conseguiu uma melhor em sua última missão desonrosa. Ele agora empunhava uma nova lâmina de um material melhor e de cabo dourado, roubada de um cavaleiro morto.

A espada velha...Algoz de tanto anônimos...Tomei-a para mim. Meu braço ainda não se recuperou e não consigo empunhá-la com firmeza. Mas isso há de acontecer ainda.

Quem sabe um dia, esta lâmina que cortou tantas gargantas pelas mãos desse homem não cortará sua própria?

4


As violências contra mim continuaram em casa. Desde o episódio do soco, o homem não levantou mais a mão para agredir minha mãe. Passei a ser seu alvo. Mas ele anda tão embriagado que não percebe que, a cada dia, cresço e me fortifico. O exercício do trabalho na lavoura somado ao da dor cotidiana que se abete gratuitamente sobre mim, quando o homem não está matando por dinheiro, me tornam mais forte ao invés de me enfraquecer, como ele pensa;

Os irmãos dele continuaram vindo com frequência, de surpresa, abusar de Marie e Marguerite. E por muitas vezes apanhei por tentar defendê-las dos dois brutos. O mais velho era muito forte e atarracado e nem sequer tive a chance de me digladiar com o mais novo, pois era nocauteado em poucos instantes. Eu gostaria que elas pudessem se casar e sair desse inferno, mas homem nenhuma as aceitaria no vilarejo. Não com a reputação manchada que o homem e seus irmãos porcos as forçaram a carregar como fardo.

Mas hoje tudo mudou.

O dia de hoje marca um passo grande na jornada de minha vida, embora eu ainda não saiba para que direção este passo me levará...

Os corpos dos dois homens ainda jazem atrás da casa e ninguém sabe ainda o que fazer com eles. Levei-os para fora do vilarejo onde ainda ponderei se os enterraria ou se os deixaria para os abutres, mas eles não ficarão para apodrecer aqui e ninguém nesta casa vai sentir o cheiro de carne podre dos dois malditos. Já causaram inconvenientes demais em vida.

Hoje eu matei.

Hoje eu tirei sangue dos dois irmãos bastardos do homem. Eles não voltarão a ferir mulher alguma.

Hoje tudo mudou.

Quando eles vieram pela porta da frente, como sempre vinham, eu os encarei, como sempre fazia. Já se somavam alguns meses desde a última vez que tinham vindo perturbar minhas irmãs. Estranhei a ausência prolongada. Minha mãe havia saído para buscar alguns legumes para uma sopa rala que tomávamos a noite. Também o homem não estava em casa, pois fora comprado por mais uma missão assassina que ainda deve durar algumas semanas. Coloque-me no meio do caminho, bloqueando a passagem. O fedor azedo que vinha de seus corpos me enojava. Só de imaginá-los, com aquele cheiro horrível que traziam consigo, o suor de vários dias, o hálito que de longe exalava o odor de carne podre, como de mil pessoas mortas, misturado à bebida forte e barata, e a urina curtida em suas calças esfarrapadas...Só de imaginá-los se deitando com minhas irmãs...Firmei meus pés no chão e, mesmo sabendo que eu não passava de um jovem enfrentando dois adultos, como o cão fiel que enfrenta os lobos para defender seu território, eu sabia que, naquele momento, ser omisso e nada fazer para evitar a injustiça seria o mesmo que cometê-la com minhas próprias mãos. Sem se dar conta do que faziam, empurraram-me para o lado, como de costume, ignorando meu conforto. Um ano atrás eu havia desafiado o homem e virei motivo de piada entre os três. Mas nenhum deles sabia que, todos os dias, no final da tarde, eu treinava para dar um soco tão poderoso novamente e empunhava uma espada. A velha espada do homem e o mesmo soco que o fez voar porta à fora.
O mais jovem dos dois homens já se adiantava, levando as mãos à calça para desamarrá-la, e olhou com malícia para Margueritte, a mais novo, ignorando minha presença. Minha irmã correu para trás de Marie, e o olhar de terror e nojo nos rostos delas levou minha mão ao cabo da velha espado do homem. Ergui a espada com firmeza e gritei a plenos pulmões:

- Parem, seus demônios! Enfrentem-me como homens e deixem minhas irmãs em paz!

Como sempre, o mais velho dos agressores veio em minha direção. Olhou-me com desprezo e caminhou lentamente, decidido a tomar-me a espada – que parecia não importa nenhum tipo de temor naqueles dois -, como se toma um brinquedo de uma criança.

Girei a espada e seu antebraço voou pelos ares antes que ele pudesse perceber de onde vinha o golpe. Pareceu que, naquele momento, os gritos de horror de minhas irmãs dentro da minha cabeça silenciaram, e só restaram os gritos reais.

Os dois homens se entreolharam num misto de terror e ódio. O cheio acre das criaturas misturou à visão do sangue que jorrava no chão da casa, ao braço inerte e sem vida caído, aos urros de dor do maldito e aos gritos lacrimosos de horror das duas moças. O outro homem ficou estupefado diante daquela cena e começou a andar de costas, lentamente, quase na ponta dos pés, em direção à porta da frente, por onde entrara antes tão cheio de si.

Eu podia ter-lhe poupado a vida. Podia ter poupado a de seu irmão. Se aqueles homens saíssem pela porta da casa, voltariam com sede de vingança e morte. Eu não poderia permitir que seu ódio por mim se voltasse contra minha mãe e irmãs. Dei um passo que não tem volta, o passo que definirá quem sou e o que sou.

Tudo aconteceu muito rápido, ergui a lâmina novamente com fúria, mas o homem conseguiu desarmar-me arremessando algumas cadeiras de madeira em mim. Logo entreguei-me ao combate corpo-a-corpo e quando percebi sentia algo semelhante ao daquele dia. Meu punho encontrou o caminho até o estômago do que escapulia, antes que ele pudesse se virar e correr. Eu não matei pelas costas. O porco estrebuchava no chão, com suas calças arriadas logo abaixo dos joelhos e suas partes íntimas, não valentes, à mostra.

Voltei para enfrentar o outro. Ele tentava conter o sangramento de seu braço e lançava-me ameaças. Meus olhos se fixaram nos seus quando ergui meu punho novamente, e pude sentir aquela energia vigorosa percorrer meu corpo mais uma vez, eu não fazia ideia do que fosse, mas se aquilo era capaz de fazer meu punho atravessar um corpo humano, era o que eu precisava para trazer paz novamente a esta família.

- Você nunca mais vai ferir mulher alguma. Vou te matar, como o animal sujo que é! – falei com firmeza, ainda que minha voz oscilasse entre graves e agudos, como nos acontece na juventude.

Com a mão que não estava ferida, o homem buscou uma faca que trazia amarrada ao tornozelo. Dessa vez não senti medo da morte. Olhei nos olhos do meu oponente e aceitei o duelo. Sem pensar muito, direcionei-me para sua cabeça e voei para cima do irmão mais velho do homem a quem não chamo “pai“. Meu golpe varou o ar, mas não encontrou o inimigo. Enquanto eu tentava me equilibrar novamente, a faca do mesmo rasgou minhas costas. Acostumado à dor, eu sabia que, se eu obedecesse ao reflexo de arquear para trás, a lâmina suja daquele maldito encontraria minha garganta, assim como os punho do homem encontraram meu rosto quando caio para trás. Ensinei meu instinto a arquear para o lado e, no mesmo impulso, me reergui, já embalando a trajetória do soco, que descreveu uma linha reta e ascendente no ar acertando em cheio o queixo num movimento de baixo para cima. Assombrado e fervendo de ódio, o demônio pareceu possuir seu corpo quando ele revidou. Urrava e espumava pela boca enquanto tentava me atingir com a faca, desse vez não de esguelha, mas com movimentos que visavam a me perfurar e não rasgar. Não sei bem o que houve depois disso, pois também senti uma força maior que guiou meus movimentos. Antes que pudesse compreender tudo aquilo, a luta estava terminada.

O corpo atarracado e grotesco jazia arqueado no chão, o rosto distorcido e seus dentes espalhados pela sala juntos de uma poça de sangue, atrás de sua cabeça, que aumentava enquanto eu ouvia o choro miúdo e abafado de minhas irmãs.

Meu braço esquerdo tinha cortes profundos e os dedo das minhas mãos se agarravam firmemente, como se estivessem colados. Caí de joelhos. Não sei por quanto tempo me deixei ficar ali. Ofegante. Nada em meus pensamentos. A poça de sangue molhou-me os joelhos que estavam apoiados ao lado do cadáver. Minhas irmãs correram em minha direção e larguei um sorriso forçado. Senti lágrimas escorrendo por minha face, mas não sei se eram minhas ou delas. Ali ficamos, nós três, abraçados sobre um corpo que não havia trazido nada além de sofrimento àquela casa.

Quando minha mãe retornou à casa, passado o choque e as vãs tentativas de tirar as manchas de sangue do chão, dirigiu-se à paróquia. O sangue pode até não ser mais visível no assoalho, mas suas manchas jamais sairão de meu coração, ou dos de minhas irmãs.

5


O homem voltou de seu serviço, mas não pisou em casa. Assim que chegou ao vilarejo, foi informado da morte de seus irmãos. Quando brandi sua velha espada, expulsando-o definitivamente, achei que fóssemos duelar. Mas não. Pedi-lhe que se retirasse e que não tornasse a nos ferir. Seus olhos brilharam vermelhos, mas ele não sacou sua arma roubada de um morto qualquer.

Ele deixa a casa. Jurou vingança de meu ato de ousadia. Gritou aos ventos que sua família de nada lhe valia. Que éramos todos traidores e desmerecedores de seu dinheiro.

Ninguém chorou.

6


Quando o grande número de frequentadores desta casa diminuiu, tínhamos a certeza de encontrar a paz. Mas não foi isso o que aconteceu. Os tantos anos de abuso e desequilíbrio parecem ter afetado toda a estrutura de nossas paredes, de nossos atos e de quem somos.

Não tem sido fácil para minha mãe nos convencer a buscar a paz fora de casa. Eu como homem desta família, devo encontrar minha paz interior sozinho. E minhas irmãs, pobres criaturas, nunca me confessaram a respeito, mas estou certo de que sofrem com censura e o sarcasmo dos habitantes do vilarejo. Certa vez Marguerite saiu para buscar batatas e notei seus olhos vermelhos e inchados de tanto chorar quando voltou. Ele nunca mais quis sair de casa. A vergonha que aqueles malditos infligiram a ela perdura mesmo após a morte.

Minha mãe, desde a morte dos agressores, tem frequentado a paróquia, e sempre nos fala da bondade e da simplicidade de padre Jean-Pierre. Mas acho que as feridas ainda precisam cicatrizar antes de nos abrirmos e nos ferirmos de novo, expondo-nos para uma pessoa de fora.

Além do mais... que padra aceitaria um assassino na casa de Deus?

Serei isso? Serei eu um assassino com o homem que me gerou?

Tenho tido sonhos estranhos frequentemente. Sou uma pessoa minúscula que anda por uma grande floresta. Alguns pássaros cantam nos galhos próximos e parecem não se assustar com minha presença. Os raios de sol são filtrados pelas copas das árvores e o caminho por onde ando é plano e agradável. Continuo pela trilha e me sinto cada vez menor. Alguns pássaros me acompanham e sua música me embriaga num misto de alegria e pressa. Pressa pra quê? Não sei. Conforme vou andando, as árvores lentamente se fecham por sobre o caminho. Tão lentamente que mal posso perceber. Ao mesmo tempo, a melodia dos pássaros acelera a tal ponto que me causa aflição. Quando dou por mim, não vejo mais os raios de sol, tudo está escuro e o ar é escasso. Tenho dificuldades para respirar. A música cessa. Começo a andar mais rápido. Ouço passos apressado às minhas costas. Mas não são pisadas humanas. Não ouso olhar para trás, mas sei que são mortos vivos. É como se eu sentisse seus dentes, prestes a se fechar em meus calcanhares. Estou correndo. Correndo. Onde estarão os pássaros, que não ouço mais? Correndo...As árvores jogam seus galhos traiçoeiros que me ferem e atrapalham. Protejo os olhos com o braço esquerdo e continuo a correr. Os zumbis se aproximam. Posso senti-los. De súbito, a trilha se abre à minha frente. Volto-me para trás, as bestas estão lá, meus músculos se enrijecem e fico paralisado. Sei que os leões vão me alcançar e vão me dilacerar. Apenas uns três zumbis se lançam sobre mim. Viro meu rosto para não vê-los arrancando minha carne, mas então tudo some, tudo para. Não consigo explicar. É como se eu entrasse em outra realidade! A brisa que vem de lá é suave, os pássaros parecem cantar como nunca novamente. O ar é leve e, sem me lembrar dos zumbis, de relance, vejo a imagem de uma mulher com um aspecto belo e nobre, mas austero. Usa um elmo, carrega uma lança e um escudo, e enverga a aegi, vestida com uma túnica branca de seda quase tão transparente que posso ver seu corpo. Aos seus pés uma serpente e em seu ombro uma coruja, ela parece segurar algo como um bastão, mas não consigo ver com clareza pela forte luz que vem detrás dela. Com os olhos ofuscados a mulher estende a mão indicando de onde vinha a luz. Ela então some e a luz vai diminuindo até o objeto de onde toda a luz vem ficar claro. Parece-me uma espécie de armadura dourada, prostrada sobre uma pedra. E imediatamente acordo. Exausto, suando frio e muito intrigado.

Esta noite o sonho se repetiu. Qual será o significado de tudo isso? Seriam os fantasmas de minhas vítimas me assombrando?

Preciso encontrar minha paz interior. E é justamente quando pareço estar me aproximando desta paz que desperto. Não a vejo a não ser o relance. A paz me é tão fugaz... Como retê-la em mim? Como com tanto peso sobre meus ombros...

7


Acabei por contar à minha mãe sobre o sonho. Quando se repetiu pela terceira vez, percebi que não tenho ferramentas para lidar com isso. Aquilo ficou em minha cabeça. Achei que seria bom conversar com alguém. Precisava esclarecer as coisas para mim mesmo e decidir que direção seguir. Sinto-me vazio. No limbo.

Ela então me tomou pelo braço, como se eu fosse uma criança, e me guiou até o padre Jean-Pierre. De início relutei, mas vê-la fazendo algo com tanta convicção me desarmou completamente. Fiquei feliz. Desde que o homem partiu, minha mãe pareceu renascer. Sua pele voltou a ser viçosa e seus cabelos loiros agora brilham ao sol. O rosado retornou ao seu rosto, e ela voltou a ser sua própria guia. Contavam-me que, quando solteira, minha mãe era uma das moças mais espirituosas da cidade. Forte e esperta, mas seu brilho se apagou aos poucos nas mãos dele. Quando eu nasci, já não havia traços de convicção nela.

De fato, tive de concordar com minha mãe com relação ao padre. Ele é uma pessoa agradável, de voz firme, mas bondosa. Acostumado às pessoas grosseiras e brutas que conheci em minha vida, causou-me espanto que um homem pudesse trazer ao meu espírito a mesma paz que me trazia a voz feminina de minha irmã mais velha.

Tivemos uma longa conversa. O padre me falou de Deus, de Cristo e da Santa Virgem. Fiquei impressionado como uma pessoa tão jovem poderia ser padre e ter tanto conhecimento. Aquele padre não deveria ter mais de 30 anos. Era muita informação de uma só vez, e ele me convidou a retornar à casa de Deus para que ele pudesse me contar melhor a história de Nosso Senhor. Irei, sim. Minha mãe tem razão. Eu sempre soube que tinha um Pai no céu olhando por mim, mas aproveitarei a oportunidade de conhecer melhor e com mais profundidade sobre Nosso Senhor. Padre Jean-Pierre me fez ver que nem todas as pessoas são egoístas, ingratas e aproveitadoras. Eu tinha me esquecido disto.

Ainda hoje de manhã, pensei que seria um tormento abrir meu coração para alguém de fora da família, que eu não conseguiria contar ao padre tudo o que aconteceu, o fardo das mortes que causei. Nem precisei falar nada. As palavras do padre entraram no meu coração e, sem que eu precisasse dizer qualquer coisa, meu coração se abriu.

8


Hoje o padre Jean-Pierre me fez uma pergunta difícil. Perguntou-me sobre o meu futuro. Sobre minha missão de vida. Sobre minhas aparições. Eu nunca pense sobre isso. Nunca. O presente sempre foi tão pesado e eu mal posso lidar com ele, como poderia saber o que fazer de meu futuro?

Então ele perguntou-me sobre o momento em que meu punho fora tão forte quanto um martelo, queria saber exatamente o que eu senti naquela hora. Ele me deixou com a interrogação cravada na mente e me passou como tarefa pensar sobre o que farei da minha vida. Será que o padre vê para mim um outro tipo de futuro, se não cuidar de minhas irmãs e minha mãe, que eu desconheço?

9


Natal. Dia da celebração do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Desde aquele primeiro encontro com padre Jean-Pierre tenho frequentado a paróquia todos os dias. Diante do altar com a figura de Cristo, ponho-me a serviço de Deus, confesso-Lhe minhas culpas e amorteço o que vai em minha alma, mas há algo que até eu renego. Desde a primeira conversa com Jean-Pierre fiquei intrigado com o súbito interesse naquele poder especial. Já faz algum tempo que tenho tentado repetir aquele feito e venho obtendo êxito. Me sinto incrivelmente bem quando consigo manifestar toda aquela energia, ainda tenho pouco controle, mas é como se um pequeno universo crescesse cada vez mais dentro de mim.

Mas hoje não. Hoje é Natal.

Foi celebrada uma bonita missa e ali, diante do altar, minhas irmãs, minha mãe e eu nos sentimos mais unidos, mais fortes e mais esperançosos com as palavras de padre Jean-Pierre.

Notei, num dado momento, que o padra tinhas as feições sérias e conversava insistentemente com minha mãe, mas não pude ouvir o que falavam. Quando perguntei a respeito do conteúdo da conversa, não me informaram.

10


Padre Jean-Pierre levou minha mãe e minhas irmãs numa excursão da qual não participei. Apresentou-as todas à Catedral. Espero que elas possam encontrar a paz de Nosso Senhor lá na Catedral. Tenho confiança na sabedoria do padre.

Por outro lado, meu treino de hoje deu resultados ainda mais fantásticos do que eu pude imaginar. Estava sentado sob a sobra de uma árvore, meditando quando dei por mim uma espécie de luz ou fumaça meio branca meio azul saía de mim. Percebi que quando mais me concentrar melhor consigo prolongar isso, apesar de ainda esta instável, evoluo a todo dia, sem saber do que se trata.

11


Hoje travei conversa interessante com padra Jean-Pierre, que me fez ver a minha pequenez diante do mundo. Sou tão ignorante!

Tudo começou pela manhã. Enquanto ajudava minha mãe a cuidar das roupas, fui acometido pela curiosidade ao ouvir a voz do povo, distante ainda, movimentando-se de forma estranha. Pedi licença a minha mãe e corri para ver o que acontecia. Ao chegar à rua principal, acompanhei a multidão que ali se aglomerava para ver a passagem de cavaleiros vindos do ocidente. Suas armaduras reluziam ao sol e pude ver os olhares de todos, assim como o meu próprio, atraídos pelas cores, luzes e formas de seus aparados, como insetos que voam cegamente em direção ao fogo, recordei-me daquele sonho. Os formosos cavalos marchavam ao sol e seus cascos batiam no chão de terra, levantando poeira, tornado o cenário ainda mais onírico. Como são belas as armaduras dos cavaleiros! Suas espadas embainhadas, seus mantos, os estandartes ao vento! Tudo aquilo me fascinava. Eu nunca tinha visto um cavaleiro tão de perto! A bela espada que o homem tinha tomado de um cavaleiro era o único espécime desse mundo misterioso e desconhecido que desfilava agora diante de meus olhos...

Acompanhei os cavaleiros até que se distanciassem e corri para me aconselhar com padra Jean-Pierre, que sabia tanto sobre o mundo, empolgado com minha nova descoberta: a de que eu queria ser um cavaleiro. Eu finalmente poderia responder à sua pergunta. O padre por certo me ajudaria, apontando o que eu deveria fazer para me tornar um deles. Porém me surpreendi ainda mais com suas palavras.

Corri como o vento e meu sorriso se desfez tão logo mencionei minhas intenções para o futuro. Padre Jean-Pierre olhou-me com seriedade, respirou fundo e, como se já soubesse a resposta, perguntou-me:

- E você já sentiu o cosmo?

Fiquei em dúvida sobre o que responder, o que era o tal cosmo dito pelo padre? Será que seria aquela sensação que eu sentia toda vez que treinava solitário?

Sem nenhuma pressa, o padre esperou com paciência que todo o silêncio esvaísse o clima de tensão. Então disse algo que tirou todas as minhas esperanças, mas acendeu certa curiosidade dentro de mim.

- Você não é aquele tipo de cavaleiro Theo, você está destinado a ser um que luta por um ideal nobre e não por um estandarte. Sabe o que significa ser este tipo de cavaleiro?

Baixei os olhos e fiz que não com a cabeça.

- Significa se tornar um cavaleiro de Atena. Lutar pela justiça, amor e a esperança, esse é o dever de um cavaleiro de Atena. Pense nisso, Theo.

Ao chegar em casa, minha mãe me disse que minhas irmãs estavam no monastério de Saint Pierre, e que haviam sido aceitas como noviças. Seu olhar era de alívio e paz, o que me confortou. Minha única preocupação se fez presente quando lhe perguntei:

- Não voltaremos a vê-las, então?

Minha mãe me olhou com ternura e com orgulho por eu ter me tornado um jovem preocupado e afetuoso. Respondeu-me, enquanto segurava minhas mãos:

- Poderemos visita-las sempre que desejarmos, Theofanis. E poderemos escrever-lhes sempre.

Fiquei abraçado a minha mãe. A casa me parecia tão vazia em minhas irmãs... Mas eu estava feliz. Se a vida do monastério lhes desse a merecida paz por tantos anos de violências e aliviasse seus corações de uma culpa que nunca tiveram, eu não poderia desejar nada melhor para elas.

Não pude deixar de pensar naquele dia. Quando me levantei contra o homem. Nem Jean-Pierre sabe disso. Eu sei que Deus Todo-Poderoso tudo sabe...Não consigo explicar. Eu sei que Deus sabe. Mas também não consigo dizer ao padre. Aquela luz que emanava de mim vez ou outra, seria aquilo que ele chama de cosmo? E por que um padre diria tais coisas sobre Atena? Já não sei mais o que pensar. Considero Jean-Pierre como um irmão, ele que tanto me ajudou nessa jornada, acho que posso dividir isso com ele, só espero que Deus me ilumine e nada de mal aconteça.

12


Contei tudo para Jean-Pierre, sobre o sonho que se repetia constantemente e sobre meus treinamentos escondidos. Jean-Pierre ficou quase eufórico, o sorriso postado em seu rosto já dizia tudo, era como se os anseios dele tivessem sido realizados. Conversou grande parte comigo sobre os tais cavaleiros de Atena e me explicou minuciosamente de todo aquele universo enigmático. Custava-me acreditar em outros deuses e avisei de antemão à meu amigo que nunca curvar-me-ia a outro deus se não Jesus Cristo nosso senhor. Ele pareceu entender, mas ainda assim não escondia a felicidade do rosto, repetia cada vez mais que o sonho que eu tinha significava que minha armadura estava a minha espera, a espera de meu amadurecimento para tornar-me digno de usá-la.

- Vamos comigo para Iráclio em Creta comigo. Lá há um homem que pode te ajudar e te treinar enquanto eu estarei a serviço numa paróquia para evangelizar os moradores.

Achei a proposta interessante. E se meu destino realmente era lutar por Atena e pela justiça? No entanto o que mais me intrigava era como um padra cristão poderia realmente acreditar numa religião pagã. Jean-Pierre virou-se para o altar e disse-me que o fato de acreditar em Atena não diminuía sua fé em Deus. Ele disse que fazia aquilo pelos ideias da tal deusa, pela paz e amor que ela queria oferecer à humanidade, não importava se ela fosse uma deusa ou uma charlatã, apenas por isso ele achava certo o que fazia. Tenho minhas dúvidas que ele conhece algum destes cavaleiros face-a-face, mas não vem ao caso, pergunto-me cada vez mais se esta não seria minha vocação?

O sol já caía e o padre então me abençoou. Andrei para casa, ainda pensativo. Despedia-me em silêncio de cada paisagem familiar, que eu deixaria para trás, para possivelmente nunca mais voltar.

Quando cheguei, minha mãe leu em meus olhos minha decisão. Abraçou-me com força e, para minha surpresa, encorajou-me a partir.

- Não há mais nada para você em Patras, Theofilus. Vá para o mundo com Jean-Pierre. Eu estou ficando velha e fraca, e suas irmãs estão seguras no mosteiro. Irei para lá e ficarei com elas. Eu sabia que este dia chegaria cedo ou tarde, pois toda mãe cria seu filho para o mundo, e não para si. Não sei que caminhos percorrerá meu filho. Mas estou certa de que tomará as decisões que julgar corretas e que Deus iluminará sua jornada. Estou orgulhosa do homem que se tornou.

Abracei-a e chorei como um menino. Essa seria a última vez que eu choraria em seu colo.

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O sol ainda não havia despontado no horizonte quando saí de meu leito, abracei minha mãe uma última vez, peguei os presentes que ela me oferecia - um terço, um colar e um manto – e me pus a caminho para despertar padre Jean-Pierre.

Com poucos pertences, deixei a casa onde passei toda a minha vida. Memórias fugidas me assombraram, mas por apenas um instante. Carregou meu passado comigo, ele faz parte de quem eu sou e pesa mais do que os parcos objetos que levo em minha jornada.

Creio que o importante é conseguir dosar nossa história particular de modo equilibrado. Traz-me conforto sobre que minhas irmãs e minha mãe estarão no monastério e terão a possibilidade de, em vez de fechar os olhos para a dor do passado, convive com ela e agradecer a Deus por terem se tornado quem são.

Somos quem somos por causa do que vivemos, e não importa como o passado foi difícil: ele fez parte de nós. Espero que especialmente Marguerite possa compreender e aceitar isso para encontrar a paz espiritual que necessita.

O padre não ficou bastante surpreso quando me viu. Ainda sonolento, achou que eu tinha ido me despedir dele, mas quando viu em meus olhos e certeza do passo que estava dando, abraçou-me e expressou sua felicidade em ter companhia na jornada. Rezamos uma prece antes de partirmos.

Mas hoje dei um passo importante.

Um passo maior do que quando fechei a porta atrás de mim.

Um passo maior do que quando pisei na estrada.

Caminhávamos sem pressa quando vi em nosso trajeto um mendigo. O homem estava sentado, pedindo dinheiro aos que por ali passavam, em um ponto da estrada ainda próximos a Patras. Suas roupas estavam em farrapos, seus cabelos e barba, crescidos e malcuidados. A pele dele tinha uma coloração estranha, amarelada e tremia. Tinha ao seu lado o que me pareceu ser uma espada enrolada em trapos. Então notei que lhe faltava a perna direita. “Pobre coitado”, pensei, “provavelmente foi um guerreiro e não pode mais lutar por causa da perna.” Busquei um pedaço de pão, assado recentemente, que eu carregava para viagem. Mas, quando me aproximei dele, senti um calafrio percorrer-me a espinha. Era ele. O homem. Aquele que me gerou;

Enquanto eu me recuperava da súbita surpresa, o homem, abrutalhado como sempre, gritou com rispidez:

- O que está olhando, idiota?

Não me reconheceu de imediato. Em minha cabeça eu já havia imaginado esse reencontro um sem-número de vezes. Ora ele vinha me enfrentar como um guerreiro, e um de nós morreria no duelo. Ora ele se voltava arrependido e pedia perdão a mim, minha mãe e irmãs... Eu não sabia como reagir. Ele me fitou por um momento e então, boquiaberto, com as gengivas sangrando, gritou:

- Você! Traidor maldito!

Quando minha imaginação retratava esse encontro, eu logo sacava minha espada e enfrentava o homem. Ele pegou sua espada. Reconheci o cabo dourado. Franzi o cenho. Ele fez menção de se levantar, mas seus braços tremiam muito.

- Estou saindo de Patras. A casa é sua. Não encontrará ninguém ali e poderá nela viver seus últimos dias como bem entender. Estou indo para Creta, para seguir minha vocação e levar vida de cavaleiro. Sua linhagem de sangue acaba comigo.

Ele empunhou a espada de cabo dourado, que tremia junto com seus braços agora fracos, e tentou, com um movimento débil, brandi-la no ar. Mas, em vez de desembainhar minha espada e responder à sua provocação, peguei o pedaço de pão e estendi-lhe a mão, oferecendo-o. O homem grunhiu, tomou o pão de minha mão e jogou-o ao chão, chamando-me de traidor. Aquilo me causou tanto estranhamento, digo até repugnância, que me fez perceber a natureza dos sentimentos e emoções atormentava a vida daquele homem. A natureza destes sentimentos e emoções e a consequência deles na ala e no corpo de meu pai. Como pecado havia arrasado seu corpo e alma... Entendi que isso não era mais assunto meu. Apesar de toda a dor, de todo o tormento causado a minha mãe e minhas irmãs, a debilidade de meu pai e suas consequências estavam agora nas mãos de Deus. A ira que ele sentia não me contaminava mais.

- Que Deus o abençoe. – disse-lhe eu, despedindo-me e deixando-o na companhia de seu ódio.

Retomamos nosso caminho na estrada e e não olhei para atrás.

14


Nossa jornada até aqui foi bastante tranquila e pacífica, apesar do frio por que passamos em muitas noites. O pior do inverno parece já ter passado, mas ainda está muito frio para se dormir ao relento, aquecido apenas por um fogo brando ou nem isso. Naquele inverno, pude perceber, como nunca antes fizera, a beleza cor de prata nas macieiras e seus frutos surgindo como joias. Sentia-me livre, apesar de todo o passado difícil de minha vida.

O padre Jean-Pierre, já familiarizado com a região, foi ótima companhia para mim. Ele me mostrava os lugares, as plantas e os animais, enquanto meus olhos brilhavam fascinados com tanta beleza e com a grandeza do mundo.

Eu nunca havia saído de Patras, e a sensação que me acompanhou o tempo todo foi de pequenez diante dessa magnífica criação de Deus que é o mundo. Como pode o homem ser tão ignorante? Somente alguém que não consegue ver sua própria pequenez diante do Senhor pode ser tão arrogante a ponto de se ver como o centro dos acontecimentos. Homens que não são capazes de enxergar além de seu próprio horizonte acabam tornando-se vítimas de todos os tipos de vício, sem querer se darem conta disto.

Lembrei-me de uma conversa que tivera com o padra enquanto íamos de barco para a ilha de Creta, sobre os tais cavaleiros e o que ele chamava de cosmo. Por grande parte do caminho insisti que ele me contasse mais sobre esses nobres homens que guerreiam em nome da paz, justiça e esperança. Conforme padra Jean-Pierre ia falando, mais vontade eu tinha de ser consagrado cavaleiro, talvez conseguisse ser um de bronze, prata ou até ouro. De qualquer modo, sei que ele está decidido a conversar com o homem que encontraremos em Creta antes de me dizer mais coisas, mas já fico grato por poder estar a seu lado.

Já estamos em território cretense, seguindo o curso de um rio e, amanhã, a meio do dia, segundo ele me informou devemos alcançar a casa do tal homem.

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O local em que o homem vivia fica em um belo campo junto a uma enorme castanheira. As primeiras mostras de que o inverno já se foi tornam ainda mais magnífico o lugar. Nos deparamos com uma casa de madeira bastante humilde e ao som de pancadas no chão, como se alguém estivesse cavando ou arando a terra, fomos instigados por nossa curiosidade a nos dirigirmos para a parte posterior da casa.

Lá encontramos um homem de cabelos grisalhos e um grande bigode, um pouco menor que eu, e estava com as mangas dobrados enquanto arava a terra. Jean-Pierre anunciou nossa chegada e ele veio até nós. Pude ver nos olhos dos dois um brilho estranho, era como se fossem grandes amigos do passado que não se viam a um bom tempo. Fiquei afastado enquanto os dois conversavam até que o padre indicou para me aproximar.

- Este é Nikos Machlas, um grande amigo meu, ele também já foi um cavaleiro como eu te contei e se tudo der certo ele irá te treinar, mas mostre algum respeito e curve-se.

Olhei meio sem entender o que meu amigo queria, olhando para o homem da cabeça aos pés ele não passa a imagem de quem foi ou é um grande cavaleiro. Recusei-me quase que instantaneamente a curvar-me e quando ambos perceberam isso Nikos balançou a cabeça negativamente enquanto Jean-Pierre esboçou uma reação de apreensão. Segurou-me pela nuca e botou seu peso sob minhas costas com o outro braço fazendo com que me curvasse, em meio à risadas sem graça ele tentou explicar-se.

- Desculpe o garoto Nikos, ele é meio cabeça dura, mas tem um grande potencial, já até consegue manifestar seu cosmo e...

O homem interviu antes que Jean pudesse terminar suas palavras enquanto eu erguia-me novamente. Nikos encarou-me profundamente e senti como se estivesse sendo preso. Que coisa era aquela? Para a surpresa geral ele deu uma resposta positiva mesmo com meu “desrespeito”.

- O garoto está certo, não se deve abaixar a cabeça para ninguém. Irei treiná-lo, se o mesmo desejar.

Apenas respondi com um aceno positivo com a cabeça e então larguei minha bagagem que resumia-se a uma trouxa de roupas numa varanda. Jean-Pierre e Nikos conversaram mais algum tempo enquanto eu apenas observava, quando o sol estava para se pôr chegou a hora da despedida.

- Não desista, Nikos tem um treino meio puxado, mas será um bom mestre, ele tem muito para te acrescentar. Voltaremos a nos ver no futuro Theo, e quero lhe ver com uma armadura de preferência.

A última lembrança que tenho do padre foi ele descendo a pequena colina onde a casa estava. Dei um “até breve” para não dizer “adeus”, algo me dizia que dificilmente voltaria a ver Jean-Pierre.

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Pouco depois de me despedir Nikos me convidou a entrar na casa, era um local simples e com pouca mobília, apenas um grande salão no centro da casa com a madeira altamente bem cuidada. Ele disse para que eu me aproximasse e fez algumas perguntas, a maioria sobre meu passado, como eu conheci Jean-Pierre e se eu já tinha despertado meu cosmo. Dito isto ele traçou seu plano de treino.

- Primeiro você deve treinar o corpo e a mente, por isso todas as manhãs quando o sol nascer sairemos para correr, depois do almoço vou te ensinar alguma técnica de combate, ao pôr do sol meditação e no meio disso vou inventando outras coisas.

Quando pensei em questionar sobre como poderia treinar meu cosmo ele respondeu.

- O cosmo de um cavaleiro, ou aspirante como você, é instável, mas se já consegue manifestá-lo é um bom adiantamento. Sigo a linha de pensamento de que apenas corpo saudável com alma saudável consegue manifestar um cosmo realmente considerável, portanto, vai acabar trabalhando isso indiretamente.

Ele retirou a parte de cima de sua túnica, ficando descalço e apenas de calça. Estalou alguns ossos do corpo até tomar uma posição.

- Agora vamos ver o que sabe lutar, faz muito tempo desde que usei minha armadura pela última vez, mas acho que dou conta de te dar uma surra.

Abri um sorriso, aquilo soou como um desafio. Aprontei-me de imediato e parti para cima ao ritmo de socos e pontapés, nem preciso dizer que cada investida minha era totalmente inútil contra a força e técnica de meu mestre. A cada tombo ou pancada ele dizia para eu me levantar e fazia perguntas a respeito de minha força de vontade, e assim, a cada queda eu levantava mais furioso do que antes e pensando menos também. Nunca vi alguém com punhos tão rápidos e reflexos tão ágeis, eu sequer consegui encostar nele naquela noite e olha que treinamos até o sol nascer no dia seguinte.

Tomamos um breve café e mesmo exausto não me dei por vencido, fomos ao lado de fora da casa onde ele amarrou alguns pesos em meus calcanhares e pulsos. Seguimos uma rota de cerca de 12 km pelos ambientes da ilha e só paramos por poucos segundos num córrego para nos refrescarmos. Sou obrigado a dizer que pensei em desistir a cada passo, mas não via outro motivo em minha vida senão aquele. Eu não tinha outras habilidades então aquela devia ser minha vocação.

Na volta degustamos de uma sopa de batatas, plantadas ali mesmo e depois de cerca de uma hora de sono fui acordado novamente.

- Pelo o que vi você tem muita garra, mas pouca técnica, vou te ensinar um pouco.

Apenas concordei. O dia inteiro ele ensinou-me socos, chutes e derrubadas, pude perceber que Nikos era um exímio praticamente de pugilismo e luta greco-romana, mas ainda não entendo o que fez um homem tão saudável que parece estar no ápice de suas habilidades abandonar sua armadura e seu dever como cavaleiro, ele não me parece de modo algum incapacitado para o serviço. Depois de muita insistência em acertar a base e no treinamento de contra-ataque e esquivas fomos até uma cachoeira no alto da montanha, onde meditamos em baixo da queda d’agua até a hora do jantar. Agora sim, tive minha primeira noite de sono muito bem aproveitada por sinal.

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Hoje durante a corrida Nikos foi me explicando as funcionalidades do cosmo, pelo o que entendi, tratava-se de um pequeno universo dentro de todos, mas que só alguns conseguiam ter acesso. Perguntei à Deus que tipo de coisa era aquela, mas para mim parecia fácil manifestá-lo uma vez que já havia conseguido e treinado no passado. Fui apresentado à um mundo novo que eu nunca tinha visto e até debati com o homem de meia-idade sobre minhas crenças. Mal pude acreditar quando Nikos disse que também acreditava em Deus, mas quando perguntei-lhe sobre o que seria Atena ele não soube responder. Acho que confundo-me neste ponto, afinal sempre cresci acreditando existir apenas um Deus em todo o universo, um Deus onipotente e onipresente. Justo e Amável, não importa o que os outros disserem nunca vou abandonar minha fé, é Deus que me faz levantar todas as manhãs.

Quando estávamos prestes a chegar em casa Nikos caiu e logo levou a mão à perna esquerda. Parecia realmente mal, pediu para que eu colhesse certas ervas e flores e foi o que eu fiz, quando cheguei em casa eu pude entender o que talvez tivera afastado-o de seus serviços como cavaleiro. Uma enorme cicatriz desde o joelho até o quadril desenhava-se em sua perna.

- Foi um ferimento de batalha, desde então fui afastado...

Explicou-me dizendo que agora não passava de um coxo e por isso poderia prejudicar companheiros que saíssem em missão com ele. Contou-me que nos primeiros anos mal podia andar e que hoje apesar de tudo não recuperou o movimento da perna totalmente e vez ou outra há crises de dor. Agora entendo porque ele pouco usava esta perna em nossos embates, mas é impressionante que lute tão bem mesmo tendo tal ferimento.

Voltamos ao treinamento físico e agora ele tentava induzir-me a usar o cosmo em meus golpes fosse me provocando ou dando instruções. Senti-me bem quando finalmente consegui fazê-lo parar de se esquivar para começar a se defender e depois de uma série de socos acertei um abaixo de seu queixo. De lá pra cá Nikos aumentou o ritmo e tomei uma surra nunca antes vista, julgo que posso ter quebrado uma costela, mas quando vi que meus golpes saíam mais poderosos pelo cosmo que fluía em mim nem dei importância, lutaria até estar totalmente exausto ou até a tarefa terminar.

No fim daquele dia enquanto meditávamos na cachoeira de forma que eu deveria usar meu cosmo para impedir que a água me tocasse Nikos disse que eu realmente tinha a vocação para me tornar um cavaleiro e que suas suspeitas só se confirmaram, ele sabia exatamente o que eu seria, apesar de não me contar. A novidade foi que ele disse que me mostraria seu antigo golpe, mas os demais eu deveria aprender ou criar sob minha própria responsabilidade.

O golpe chamava-se algo como Matilha em Caça.

Pela manhã seguinte Nikos dizia estar impossibilitado de correr junto comigo e disse para que eu fizesse o percurso sozinho. Aceitei a sugestão, mas fiz uma breve pausa na mata fechada, queria testar algo. Concentrei meu cosmo no punho direito e então um direto contra uma árvore. Arregalei meus olhos quando vi o resultado, grande parte da área foi totalmente destruída quando meu cosmo foi liberado pela ação do soco criando uma espécie de raio que varreu a vegetação das proximidades e rachou o chão.

Voltei e disse tudo a Nikos, mas ele não se surpreendeu, pelo contrário, disse que em alguns anos iria me levar ao santuário em Atenas, mas isso somente quando eu fosse digno de uma armadura. Treinamos cada vez mais e ele introduziu a metodologia de seu golpe, não me pareceu algo muito difícil somente cansativo. Mais algumas surras, histórias e treinamentos e quando percebi acho que Nikos foi o mais próximo que cheguei de ter um pai já que o homem não poderia ser. Aos meus 14 anos ele e Jean-Pierre me fizeram perceber o quanto Deus escreve certo por linhas tortas, sem dúvida tenho muito a agradecer aos dois.

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Sete longos anos se passaram e de lá pra cá pude ver minha notável evolução desde a criança que era presa num cômodo quando o homem erguia a mão contra minha mãe, até agora que consigo derrotar Nikos com certo esforço. De certo mudei e fiquei sujeito a tudo o que vivi e senti até então, me sentia extremamente bem, ao longo dessa meia década tive mais certeza que queria lutar por Atena, desde que seus ideais fossem mesmo o melhor para a humanidade.

Agora dirigíamos por uma longa caminhada em direção à Atenas, fiz tantas descobertas e passei por tanta coisa que quando olho para trás vejo mais história de vida que muitos anciões. Claro que criei um jeito meio insolente de ser e amadureci meu corpo, mente e cosmo. Carrego em minhas costas uma grande caixa onde encontra-se a armadura de ouro de câncer, nunca esquecerei o dia em que ela veio até mim.

Acho que senti o espírito de cada cavaleiro antes de mim pulsando ali dentro dela, era fantástico. Nikos sentiu-se orgulhoso por eu vestir uma armadura de ouro e disse que agora sim eu poderia ir ao santuário apresentar-me e seguir meu rumo.

No caminho passamos pelo mosteiro em que minha mãe e irmãs vivem e elas quase não me reconheceram, talvez fosse o novo corte de cabelo ou não. Enviei um carta à Jean-Pierre comentando meus feitos e dando-lhe a notícia e Nikos disse que entregaria para ele, queria muito agradecer melhor a todos eles que me trouxeram até aqui, mas acho que palavras não serão o bastante. Quando chegamos a Atenas as lembranças de minha vida passaram em meus olhos, mas senti um cosmo aconchegante que parecia me guiar.

- Agora você traçará seu próprio caminho Karagounis, lute para que esse mundo continue belo e jamais deixe que um inimigo faça um corte do joelho até o quadril em você, acabará como um coxo que nem eu.

Dividimos algumas risadas enquanto sentia toda aquela nova aura na cidade de Atenas. Despedi-me de Nikos que pediu para eu não fazer besteira para não sujar seu nome, afinal ele foi um ótimo mestre. Caminhei carregando minha armadura rumando ao santuário e agora só digo que a nossa maior glória não reside no fato de nunca cairmos, mas sim em levantarmo-nos sempre depois de cada queda. Então preparem-se porque quem achou que eu vim só pra ser mais um, está errado.

Muito prazer, chamo-me Theofilus Karagounis, ou Karagounis de Câncer, treinado pelo notável Nikos Machlas.
Len de Sagitário
Len de SagitárioCavaleiro de Ouro
MensagemAssunto: Re: Karagounis de Câncer Karagounis de Câncer Icon_minitime1Dom Fev 24, 2013 4:56 pm

Aceita. Mude seu nome para alguma coisa de Câncer.

Karagounis de Câncer

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